Com alcance nacional, nova tarifa social traz grandes desafios para o setor
Novo benefício deve trazer impactos profundos para usuários de baixa renda, prestadores de serviços e agências reguladoras; IAS organizou informações sobre o tema
Publicado en 03 Dic 2024
Escrito por Por el equipo IAS
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Uma tarifa social de água e esgoto de alcance nacional entra em vigor em 11 de dezembro. O novo benefício deve trazer impactos profundos para usuários de baixa renda, prestadores de serviços e agências reguladoras.
Aprovada em junho de 2024, a lei nacional n°14.898 traz regras gerais mínimas e mais facilitadas para garantir que a população mais pobre tenha acesso a uma tarifa social, que representará no mínimo 50% de desconto na conta de água e esgoto normal.
A lei estabeleceu um prazo de 180 dias após sua aprovação para que gestores, prestadores e reguladores se preparem para a sua implementação. No entanto, o prazo não parece ter sido suficiente e a lei passa a valer agora.
Os desafios para a implementação da lei são grandes e desiguais de acordo com o estado, o prestador e a região do país. Há empresas que já praticam esse desconto e agências reguladoras que já criaram regras, fazendo com que o impacto da nova lei seja pequeno. Por outro lado, há municípios onde os prestadores não estão estruturados para a mudança. Soma-se ainda o fato de que o número de pessoas que terão o direito à tarifa social é bastante expressivo se comparado com a população total. Como consequência, é esperado um impacto na tarifa média.
O IAS organizou informações sobre a lei e os desafios abaixo.
O que está na lei
Princípio
A implementação da tarifa social se faz fundamental para diminuir o comprometimento da renda daqueles mais pobres para acessar serviços essenciais como os de saneamento básico. De acordo com a ONU, os custos dos serviços de água e saneamento não deveriam ultrapassar 5% do rendimento familiar.
Regra geral
As empresas prestadoras dos serviços de água e esgoto devem dar um desconto mínimo de 50% na conta de água e esgoto para usuários (famílias) com renda per capita até meio salário mínimo (R$ 706 hoje) , inscritas no CadÚnico (Cadastro Único para Programas Sociais), ou que tenham pessoas com deficiência ou com idade maior que 65 anos sem meios de prover a própria manutenção e que receba o Benefício de Prestação Continuada (BPC). Dados do CadÚnico mostram que há pelo menos 20,4 milhões de famílias (com 52 milhões de membros) com renda per capita menor que meio salário mínimo e ligação domiciliar à rede pública de abastecimento de água.
Régua mínima
A lei estabelece critérios mínimos nacionais, mas não invalida regras já aplicadas por prestadores que tragam descontos tarifários maiores. Por exemplo, a Arsesp, agência reguladora que regula o contrato único da Sabesp com a Urae 1 (que engloba 375 municípios do estado de São Paulo), já praticava a tarifa social com base no CadÚnico, oferecendo valores diferenciados de tarifas para as categorias Vulnerável (famílias com renda per capita até 218 reais) e Social (famílias com renda per capita entre R$ 218 e meio salário mínimo por pessoa, R$ 706).
Desburocratização
A lei definiu que o cadastramento das famílias que têm esse direito passa a ser automático, não sendo mais necessário o consumidor levar seus documentos e comprovantes para a empresa de água e esgoto. É o próprio prestador dos serviços o responsável por identificar o beneficiário comparando as contas de água e esgoto com o cadastro do CadÚnico. A base é o compartilhamento de informações do CadÚnico, de responsabilidade dos equipamentos de assistência social com as prestadoras de serviço e as agências reguladoras de saneamento.
Reequilíbrio econômico financeiro para prestadores
Os contratos de prestação dos serviços terão o direito de passar por uma readequação. Isso pode acarretar em aumento de tarifa para consumidores finais que não estejam na faixa contemplada pelo benefício. O reequilíbrio dos contratos é feito junto às agências reguladoras e tem como base o princípio dos subsídios cruzados. Representantes de empresas públicas e privadas avaliam que em alguns locais o impacto no aumento da tarifa poderá ser grande. De acordo com dados da AESBE (Associação das Companhias Estaduais de Saneamento), que hoje representa 13 companhias, o aumento no número de unidades que passará a ter o direito à tarifa social será de, por exemplo, mais de quatro vezes para o prestador Embasa (BA), mais de 20 vezes para a Cagece (CE) e de mais de 7 vezes para a Compesa (PE).
Novo fundo da universalização
Pela nova lei, o poder executivo fica autorizado a criar a “Conta de Universalização do Acesso à Água”, com objetivos amplos de promover a universalização e garantir o direito humano à água potável. O objetivo é incentivar o investimento em áreas de vulnerabilidade social, provendo recursos para compensar descontos aplicados nas tarifas sociais aos usuários. Os recursos para essa conta são da União e ficam sujeitos à disponibilidade orçamentária. A priorização da alocação desses recursos seguirá a quantidade total de usuários beneficiados com a tarifa social, o critério regional, a necessidade de auxílio financeiro ao prestador de serviços e o cumprimento das metas de universalização. Não fica especificado, no entanto, quando será criada essa conta, de onde virão os recursos (por exemplo, parte dos impostos pagos pelo setor) e as regras de funcionamento para o subsídio. É necessária uma regulamentação específica.
Os desafios da lei
Quantos são os beneficiários?
Para dimensionar o tamanho do desafio, levantamos o número de pessoas inscritas no Cadastro Único que estão em famílias com renda de até meio salário mínimo per capita, e que moram em domicílios conectados à rede pública de abastecimento de água, e contrapomos com o número de pessoas atendidas com abastecimento de água segundo o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), com ano base de 2022.
De acordo com o CadÚnico, em outubro de 2024, havia um total de 52 milhões de pessoas em famílias de baixa renda conectadas à rede pública de abastecimento de água. Esse montante representa 30% do total de 171 milhões de pessoas atendidas com serviços públicos de abastecimento de água (dados do Snis 2022). Ou seja, quase um terço da população que hoje tem acesso aos serviços públicos de água estão em domicílios que têm direito ao benefício da tarifa social de água e esgoto.
O número já é expressivo a nível nacional, mas se avaliarmos a mesma proporção por estados, chegamos a extremos muito dissonantes. No Maranhão, por exemplo, quase dois terços (61%) da população atendida com água estão em famílias com direito à tarifa social. Já Santa Catarina é o estado com a menor proporção – 12,5% da população atendida são de famílias com direito ao benefício.
Estado | Total de pessoas inscritas no Cadastro Único (CECAD, outubro 2024) | População total do estado (CENSO 2022) | População total atendida com abastecimen– to de água (SNIS 2022) | Pessoas em famílias com renda de até meio salário mínimo, que declaram receber água por rede pública (CECAD 2024) | % de pessoas na área de atendimento por rede pública, que estão em famílias com renda de até meio salário mínimo per capita |
MA – Maranhão | 4.559.608 | 6.775.805 | 3.836.991 | 2.365.380 | 62% |
AP – Amapá | 500.973 | 733.759 | 344.360 | 196.944 | 57% |
CE – Ceará | 5.668.113 | 8.794.957 | 6.141.616 | 3.336.839 | 54% |
AC – Acre | 555.002 | 830.018 | 398.459 | 211.091 | 53% |
PA – Pará | 5.448.073 | 8.121.025 | 4.284.161 | 2.085.152 | 49% |
PI – Piauí | 2.181.304 | 3.271.199 | 2.298.625 | 1.109.069 | 48% |
BA – Bahia | 9.207.242 | 14.141.626 | 11.271.677 | 5.337.887 | 47% |
RN – Rio Grande do Norte | 1.995.813 | 3.302.729 | 2.590.846 | 1.195.179 | 46% |
PB – Paraíba | 2.494.511 | 3.974.687 | 2.971.873 | 1.281.220 | 43% |
RR – Roraima | 381.742 | 636.707 | 505.536 | 212.220 | 42% |
AM – Amazonas | 2.618.385 | 3.941.613 | 3.135.662 | 1.305.031 | 42% |
AL – Alagoas | 1.994.120 | 3.127.683 | 2.383.267 | 967.231 | 41% |
SE – Sergipe | 1.367.954 | 2.210.004 | 2.024.733 | 817.979 | 40% |
PE – Pernambuco | 5.729.961 | 9.058.931 | 7.766.224 | 3.059.127 | 39% |
TO – Tocantins | 907.308 | 1.511.460 | 1.285.272 | 496.212 | 39% |
MS – Mato Grosso do Sul | 1.394.684 | 2.757.013 | 2.366.515 | 758.692 | 32% |
ES – Espirito Santo | 1.776.468 | 3.833.712 | 3.195.638 | 985.948 | 31% |
RJ – Rio de Janeiro | 6.715.505 | 16.055.174 | 14.300.607 | 4.091.626 | 29% |
GO – Goiás | 3.123.561 | 7.056.495 | 6.280.842 | 1.757.850 | 28% |
MG – Minas Gerais | 8.767.735 | 20.539.989 | 17.220.812 | 4.759.523 | 28% |
MT – Mato Grosso | 1.680.626 | 3.658.649 | 3.068.179 | 828.924 | 27% |
DF – Distrito Federal | 909.197 | 2.817.381 | 2.788.897 | 622.709 | 22% |
RO – Rondônia | 834.240 | 1.581.196 | 884.665 | 189.679 | 21% |
RS – Rio Grande do Sul | 3.715.260 | 10.882.965 | 9.548.609 | 2.014.572 | 21% |
SP – São Paulo | 14.081.735 | 44.411.238 | 42.232.443 | 8.817.980 | 21% |
PR – Paraná | 4.262.334 | 11.444.380 | 10.995.913 | 2.293.512 | 21% |
SC – Santa Catarina | 1.718.218 | 7.610.361 | 6.843.996 | 853.626 | 12% |
BRASIL | 94.589.672 | 203.080.756 | 170.966.418 | 51.951.202 | 30% |
Como definir a priorização dos recursos federais?
Segundo o deputado federal Pedro Campos, relator do texto da lei, em evento na Fiesp em outubro, há uma estimativa de que o total de usuários (famílias) que recebem esse benefício salte de 2 milhões para 9 milhões. Diferentes estimativas no setor apontam para perdas na ordem de bilhões de reais. Os dados vêm de estudos da Abcon e Aesbe, entidades do setor. Esse custo, de acordo com o deputado, deve ser dividido entre o subsídio cruzado (os usuários) e a conta de universalização (recurso público federal). Ou seja, o governo deverá colocar recursos nesse fundo para viabilizar a implementação da lei.
Como a lei terá eficácia imediata?
A lei trata de diretrizes para direitos fundamentais por isso possui eficácia imediata. Com a entrada em vigor da lei, em 11 de dezembro, todos os usuários que se enquadram nos critérios passarão a ter esse direito. “Para eficácia da lei precisa haver o reequilíbrio econômico financeiro dos contratos vigentes, mas isso vai gerar um crédito dos usuários com o prestador dos serviços”, afirmou Juliana Braga da Associação Nacional dos Defensores Públicos, em evento na Comissão de Legislação Participativa da Câmara dos Deputados, realizado em novembro. Wladimir Antonio Ribeiro, mestre em ciências jurídico-políticas, especialista em direito aplicado ao saneamento e associado ao Ondas, reforça que cabe ressarcimento aos usuários pelo período em que a empresa não cobrar a tarifa social por estar realizando a readequação.
Como será a regulamentação?
Para auxiliar a normatização da tarifa social por mais de 80 agências reguladoras infranacionais e a revisão de muitos contratos, a lei prevê que estas deverão, preferencialmente, seguir a norma de referência da ANA (Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico) sobre estrutura tarifária. Esta norma ainda está em elaboração, segundo a ANA. Na proposta de agenda regulatória, ainda em aprovação, o prazo seria o 1° semestre de 2025.
Cada agência reguladora precisará criar suas normas e fazer a revisão tarifária, se necessário. Depois que for publicada a norma de referência da ANA, talvez ainda precisem fazer adequações.
No Brasil, algumas agências já se adiantaram durante os seis meses que decorreram entre a aprovação da lei e a sua eficácia. São poucas, mas grandes em número de contratos, incluindo Arsemg (contratos da Copasa – MG), Arsesp (contratos Sabesp – SP) e ARES-PCJ (vários contratos em São Paulo). Caberá também à ANA elaborar uma lista de quem está cumprindo ou não o estabelecido na lei e dar publicidade a ela em seu sítio eletrônico.
Conhecimento e pressão pela implementação da tarifa social
Se faz necessária uma mobilização ou pressão para que a tarifa social saia do papel de forma uniforme em todo país.
A primeira medida é ampliar o conhecimento das pessoas a respeito desse direito por meio de campanhas de divulgação em equipamentos de assistência social nos municípios ou mesmo nas contas de água e esgoto.
Não há na lei penalidades ou prazos específicos para a criação da conta de universalização ou para as regulamentações necessárias. Por isso, é fundamental a cobrança por parte da sociedade civil e um olhar atento e ativo por parte dos órgãos de defesa do consumidor e de garantias dos direitos, como Defensoria Pública e Ministério Público.