Água que sobra, água que falta

No Dia Mundial da Água, lembramos da centralidade do papel desse recurso no contexto das mudanças e da adaptação climática

Paulo Pinto (Agência Brasil)
Paulo Pinto (Agência Brasil)

Uma maneira simples de definir a maior parte dos eventos climáticos extremos poderia se resumir às duas colocações do título deste artigo. Basta pensar em estiagens prolongadas e consequências como problemas de abastecimento, mananciais secos e rios onde se pode caminhar sobre o leito. No outro extremo, temos temporais intensos que resultam em rios transbordando, alagamentos generalizados e cidades inundadas. Essas ocorrências têm sido muito mais frequentes ao longo dos anos

7 a cada 10 decretos de situação de emergência municipais nos últimos 11 anos ocorreram por desastres que se dão por meio da água, de acordo com a Confederação Nacional de Municípios (com dados da Defesa Civil de municípios, estados e da União). A média anual de decretação de emergências por seca e chuvas entre 2020 e 2023 foi 40% maior do que no período anterior, de 2016 a 2019. 

De acordo com dados do Sinisa (Sistema Nacional de Informações sobre o Saneamento), divulgados em meados de março, foram identificados 30.575 ocorrências de eventos hidrológicos impactantes no país apenas em 2023 (estes incluem enxurradas, alagamentos e inundações). Ainda segundo o levantamento, mais de 2,2 milhões de domicílios no país estão sujeitos a inundações. 

Se a água é central no contexto das mudanças climáticas, as estruturas que a captam, canalizam, tratam, distribuem e escoam consequentemente também o são. Por isso, é fundamental incluir o saneamento básico (água, esgotamento sanitário, manejo de resíduos sólidos e drenagem urbana) nas conversas sobre mudanças climáticas.

O Dia Mundial da Água (22 de março) é uma oportunidade para entender como o saneamento das cidades brasileiras está amplamente despreparado para lidar com o contexto atual de eventos mais violentos e mais recorrentes. Em todo o país, o poder público precisa despertar para esse novo normal. Desastres naturais de efeitos imprevisíveis acontecem, mas é preciso não lidar com eles apenas com medidas de emergência. É preciso estarmos preparados, adaptados para um mundo onde esses eventos serão cada vez mais frequentes.

Pelo mundo, abordagens e estratégias de adaptação que envolvem se prevenir contra eventos extremos nos apresentam ideias e possibilidades que tornam cidades mais maleáveis e receptivas às águas, capazes de receber um evento de impacto e rapidamente voltar a sua forma original, sem que haja um rastro de destruição e morte depois que o temporal passa.

Está colocado aí o conceito de resiliência, algo que precisa ser aplicado com urgência em nossos espaços urbanos, como defende a recente publicação do IAS, “Adaptação e Saneamento – Por um setor resiliente às mudanças climáticas”. 

Na China, se multiplicam as cidades-esponja, capazes de absorver mais as águas pluviais. Para o arquiteto chinês Kongjian Yu, da Universidade de Pequim, “as enchentes não são inimigas e podemos ser amigos delas usando sabedoria ancestral”. De Nova York, o plano de adaptação climática lançado em 2007 prevê que cada morador tenha pelo menos um parque ou área verde a uma distância de, no máximo, dez minutos de caminhada.

Já o gerenciamento da água inteligente ajuda na preparação para períodos de falta. Em Tóquio, no Japão, uma checagem extensiva de 27 mil quilômetros de canos conseguiu reduzir a perda de água de até 20% em média para menos de 3%. Em Madri, na Espanha, um sistema de monitoramento de secas, disponível online para a população, auxilia na preparação e no acionamento de medidas necessárias.

Os exemplos pelo mundo nos ensinam que existem soluções possíveis, mas para que aconteçam de fato é preciso construir vontade política, priorizar o saneamento como estruturante na adaptação das cidades. Vale lembrar que o Plano Clima Adaptação, do governo federal, está em consulta pública, sendo uma oportunidade para reforçar o saneamento nas estratégias que venham a ser desenhadas. 

A hora é agora para que se fomentem ideias e soluções criativas para o saneamento das cidades esteja à altura do desafio. Não se trata de reinventar a roda, mas entender e respeitar os muitos fluxos com que a água passa por nós. 

Marussia Whately Arquiteta e urbanista, coordenou a Aliança pela Água durante a crise hídrica de São Paulo. É diretora-executiva do Instituto Água e Saneamento (IAS)

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