Ceará avança na implementação da regionalização

Estado instituiu suas governanças microrregionais e leiloou a maior PPP de esgoto do Brasil. Muitos de seus desafios estão presentes no Pacto pelo Saneamento, iniciativa que contou com a participação de diversas instituições

A aprovação do Marco Legal do Saneamento impôs uma série de mudanças no setor. A regionalização como um dos pilares para a gestão compartilhada dos serviços públicos, sobretudo de água e esgotamento sanitário, é uma delas. Enquanto alguns estados enfrentam dificuldades para cumprir os prazos estabelecidos na lei 14.026/2020 dois anos após a sanção, outros seguem em ritmo mais rápido. 

O Ceará é um dos estados à frente na implementação. O estado aprovou sua lei de regionalização em 18 de junho do ano passado, dividindo seus 184 municípios em três Microrregiões de Água e Esgoto. Após três meses fez decretos com os regimentos internos das autarquias interfederativas microrregionais (Decretos 34.275/2021, 34.276/2021 e 34.277/2021).

Antes mesmo da aprovação do novo Marco Legal, as Secretarias das Cidades e de Saneamento do Estado e a Companhia de Água e Esgoto do Ceará (Cagece) se anteciparam e renovaram os contratos de programa como uma exigência para a realização de uma grande Parceria Público-Privada (PPP) de esgoto. Quando a 14.026/2020 foi aprovada, os contratos que representavam 80% da receita da Cagece tinham vigência até 2055. Com a lei de regionalização do Ceará, os contratos dos 151 municípios atendidos pela Cagece foram unificados em três grandes contratos por microrregiões. Os outros 33 municípios têm Serviço Autônomo Municipal (SAAE) ou concessões privadas. 

No último dia 27/09, outro importante passo para acelerar o investimento em esgoto para grandes cidades do Ceará foi dado com o leilão para a PPP de esgoto de municípios atendidos pela Cagece pertencentes à Região Metropolitana de Fortaleza e alguns da Região Metropolitana do Cariri. A PPP teve modelagem do BNDES e serve de exemplo para outras companhias de saneamento estaduais angariar recursos para investimentos, especialmente para o esgotamento sanitário,  sem a concessão integral ou privatização.  A Aegea Saneamento venceu os leilões e assumiu o compromisso de investir cerca de R$ 6,2 bilhões em 24 cidades cearenses com o objetivo de alcançar as metas de universalização previstas no Marco Legal até 2033. 

Como parte do monitoramento contínuo feito pelo IAS da implementação do Marco Legal e para compreender melhor a experiência da regionalização no estado, o IAS entrevistou Paulo Henrique Lustosa. Com ampla experiência no setor do Saneamento, Lustosa foi um importante ator da implementação da regionalização no Ceará. Atuou como secretário do Meio Ambiente, das Cidades e secretário executivo de Saneamento no governo estadual. Foi também deputado federal por três legislaturas, é formado em Administração, mestre em Políticas Sociais e doutor em Desenvolvimento e Meio Ambiente.

Selecionamos os principais trechos da conversa com Paulo Henrique Lustosa e disponibilizamos abaixo, junto com informações do Observatório do Marco Legal (Sanitation Legal Framework Observatory), plataforma do IAS que reúne os resultados do monitoramento da Lei 14.026/2020.

Raio-X da Regionalização do Saneamento no Ceará

Ambiente seguro para investimentos privados

Lustosa defende que o Marco Legal do Saneamento é uma resposta dos congressistas à dificuldade do Estado para financiar políticas públicas de universalização do acesso à água e ao esgotamento sanitário.  

Embora trate dos quatro componentes do saneamento, incluindo manejo de resíduos sólidos e águas pluviais, “o foco da lei é água e esgoto, sempre foi, e o princípio norteador original era como criar mecanismos para estimular a entrada de capital privado nesse esforço de investimento”, informa. As alterações no modelo de contratação e regulação oferecem maior sensação de segurança institucional ao investidor privado.

Regionalizar para equilibrar

“Só que quando o senador Tasso [Jereissati – PSDB/CE], que foi o relator da matéria, já havia avançado nessa discussão, chamou-se atenção para o risco verdadeiro de que nesse processo o capital privado se interessasse única e exclusivamente por aquelas praças mais rentáveis e, como costuma muito acontecer nos regimes de privatização do terceiro mundo, as camadas mais pobres e periféricas iam ficar esquecidas. E aí você teria o pior dos mundos”, relata. Para contrabalancear, a solução escolhida foi regionalizar os serviços. 

“Estruturam-se regiões de abastecimento de água e esgoto, põe a joia da coroa ali e põe algumas coisas nem tão rentáveis e de certa maneira você mantém a lógica do subsídio cruzado que já estava previsto na Lei 11.445/2007, só que em um mecanismo que o investidor privado não fica tão arrepiado. Ele consegue internalizar e fazer a proposta dele”.

A ideia geral, de acordo com Lustosa, era que a microrregião mais rentável (que engloba a RM de Fortaleza) fosse financiada por meio do capital privado e as não rentáveis fossem financiadas com capital não oneroso e a operação poderia ser feita diretamente pela Cagece, por PPP ou setor privado. “A gente tinha o modelo de regionalização, tinha a defesa territorial justificada e a demonstração da viabilidade econômico-financeira”, detalha.  

“Do ponto de vista do filé e do osso, a Cagece já estava com o filé todo para ela até 2055, quem quisesse pegar o osso, que era 20% da receita e 70% dos municípios, poderia pegar. É óbvio que não fizemos com essa intenção, mas esse era o cenário”. 

Na avaliação do especialista, a força política da microrregião vai dar o tom do avanço do saneamento no estado e definir quem será atendido primeiro. “A Cagece vai ter que negociar com o bloco de municípios e não com cada município. Lógico que a Cagece ainda tem uma posição de força, até porque o estado tem uma parcela significativa dos votos na microrregião, mas vai ter que dialogar”.  

Nesse aspecto a microrregião representa um avanço. “Os municípios pequenos do Ceará foram empoderados, porque agora eles têm voz e têm voto num colegiado que representa 25%, 30% da receita da Cagece. Então acho que esse é o grande ganho que a microrregião trouxe do ponto de vista da regulação da governança dos serviços e dos contratos”, ressalta.

Lustosa acredita que a microrregião terá um papel importante em construir com os municípios soluções que tenham escala e viabilidade para enfrentar o desafio de universalizar. “A ideia é ganhar escala, e se a gente ganha escala, a gente pode conseguir encontrar soluções que sejam eficientes”.

Pacto pelo Saneamento

Fora do Poder Executivo, a Assembleia Legislativa realizou um diálogo com representantes de diversos segmentos para a construção do Pacto pelo Saneamento Básico. “No final agora de junho a Assembleia Legislativa nos entregou esse Pacto pelo Saneamento, é uma coisa bem ampla, transcende os limites da água e do esgoto, tem uma discussão sobre políticas de resíduos sólidos bem atual, tem uma queixa justificada e uma cobrança justificada sobre o filho pobre do saneamento que é a drenagem, tem uma discussão sobre a relação da educação ambiental com saneamento, o saneamento rural tratado à parte, como uma outra categoria de saneamento”, explica. 

O Pacto pelo Saneamento Básico é uma articulação com diversas organizações de diferentes segmentos, coordenada pelo Conselho de Altos Estudos e Assuntos Estratégicos (CAEAE), órgão vinculado à Mesa Diretora da Assembleia Legislativa do Estado do Ceará, que teve início em dezembro de 2019 com o objetivo de promover a integração institucional e fortalecer a política pública de saneamento básico no estado. 

O Pacto deu origem ao Plano Estratégico de Saneamento Básico do Ceará, construído com a participação de 45 técnicos e 25 instituições. De acordo com ele, foi uma discussão muito rica, com ampla participação voltada para subsidiar a construção do Plano Estadual, que se desdobra em três Planos Microrregionais que, por sua vez, substituem os atuais Planos Municipais existentes.  

Na renovação dos contratos de concessão, a Cagece tinha que cumprir a exigência do novo Marco do Saneamento e apresentar um cronograma de metas intermediárias para a universalização até 2033. “A Cagece apresentou um plano de metas intermediárias com base nos PMSBs (Planos Municipais de Saneamento Básico) que ela tinha, com base no plano de investimento dela e nós (as microrregiões) aprovamos o plano de metas dela em caráter provisório, até a aprovação do Plano Estadual de Água e Esgoto”, explica.

Após o processo de elaboração dos três Planos Microrregionais e aprovação dos planos pelas microrregiões, as metas intermediárias serão substituídas. As novas metas que trazem: quando, que município, que valor, vão automaticamente virar anexo do contrato e passam a obrigar a Cagece a cumprir o plano. “Então a gente passa a ter um instrumento de enforcement, não vai ser um plano de prateleira, porque se a Cagece não cumprir o planejado, ela está sujeita na forma da lei a perder o contrato”. A regra vale também para os municípios cearenses atendidos por meio do Serviço Autônomo de Água e Esgoto (SAAEs).

Inconsistências

Se a lei federal oferece ambiente seguro ao investimento privado, cria também um vazio para os municípios com prestação direta dos serviços de água e esgoto e  entraves para atender territórios específicos onde as grandes obras não são soluções adequadas.

“Nós não temos até agora nenhuma diretriz sobre o que fazermos para que aqueles municípios que têm serviços autônomos de água e esgoto cumpram as metas de universalização. Ninguém falou sobre isso. E nós temos milhares de municípios no país que estão nessa categoria”, destaca. Somente no Ceará, são 34 municípios nessa situação. “Municípios grandes como Sobral, Morada Nova, Limoeiro do Norte, Iguatu, Crato, e que o novo Marco do Saneamento simplesmente ignora a existência”, critica. 

“Como a lei não atentou para o rural nem para os municípios que não têm contrato de concessão, que fazem execução direta, isso ainda é uma grande interrogação que a gente vai discutir quando do processo de planejamento estadual”.

Sobre o acesso ao saneamento em áreas rurais o entrevistado reforça: “ao revogar todos os parágrafos e alíneas do artigo 10º da 11.445 (que reuniam as exceções às regras previstas no artigo, sobre licitação e concorrência antecedendo o processo de contrato de concessão), o legislador matou, do ponto de vista legal, a solução que estados como Ceará e Bahia tinham engendrado para o saneamento rural. Do dia para a noite o Sisar [Sistema Integrado de Saneamento Rural] foi para a ilegalidade. O legislador pensou numa parte específica do Brasil, aquela parte que tem contrato de concessão com companhias privadas ou estaduais de abastecimento de água.” 

Além disso, não cabe a modelos de gestão comunitária a responsabilidade de universalizar o acesso. “No caso do nosso modelo de gestão do Sisar, como é uma autorização, não é uma concessão, eu não tenho como obrigar a comunidade a universalizar. Quando estou falando do nosso modelo de gestão comunitária, o Estado reconhece que não consegue levar o serviço para aquela comunidade rural, porque é longe, porque a população é dispersa, porque é inviável economicamente operar. O Estado reconhece e, entendendo que as pessoas não podem morrer de sede lá, diz: eu autorizo você a operar um sistema autônomo seu, para resolver a sua vida. Ora, nessa situação, o estado não pode obrigar o cara a universalizar, não pode chegar no cara e dizer: oh, além de atender o seu, você vai ter que atender o de seu vizinho. Não é papel das associações comunitárias, não é papel do Sisar universalizar o serviço, isso é papel do Estado”, argumenta.

O Sisar é uma organização não governamental criada em 1996 e atua como uma federação de associações comunitárias que possuem sistemas de abastecimento de água e esgoto pertencentes à mesma bacia hidrográfica. O modelo é aplicado em localidades do semiárido brasileiro, onde os sistemas tradicionais não são economicamente viáveis. As associações são responsáveis pela gestão dos sistemas. O Sisar, por sua vez, é acionado quando a comunidade atendida não tem conhecimentos suficientes para determinada atividade. O modelo é replicável e conta com oito unidades, 1.041 sistemas instalados e mais de 700 mil pessoas beneficiadas.

Soluções para a área rural

Paulo Henrique Lustosa reconhece como “grande avanço” do Marco do Saneamento o reconhecimento da possibilidade de soluções mistas e modelos que permitam a junção de sistemas integrados e soluções individuais para o esgotamento sanitário. Ainda assim, segundo ele, é fundamental a criação de um marco legal específico para a área rural, que é “outro universo, outro mundo”. Mesmo em áreas urbanas consolidadas será necessário recorrer a sistemas mistos por fatores como custo de expansão da rede e questões técnicas, como tipo de solo. 

O especialista compartilhou a experiência de gestão dos sistemas de água em bases comunitárias. “Depois de resolvido o problema dos contratos da Cagece, a gente já estava começando a discutir na microrregião como a gente poderia atacar esse desafio que é cumprir as metas nas áreas rurais. Tem de um lado um problema que é de financiamento do investimento, embora o estado do Ceará tenha uma previsão bastante otimista de investimento em saneamento rural ao longo dos próximos anos”, relata.

O estado contratou empréstimos com o banco alemão KFW e com o Banco Mundial, além de uma parceria com a Fundação Nacional de Saúde e uma doação da Comunidade Europeia de 7 milhões de euros para investir na qualificação do modelo de gestão do saneamento rural. “A saída que a gente encontrou do ponto de vista jurídico foi a de fazer meio que uma analogia entre o serviço rural e os serviços de condomínio. Trata-se de um arranjo institucional precário e que só será superado com a criação de um marco do saneamento rural.” 

“Não tenho como, por exemplo, viabilizar um sistema rural cumprindo as metas de monitoramento da qualidade da água exigidas pela legislação, não consigo pagar. Temos um sistema que atende 30, 40 famílias, como vão fazer três exames laboratoriais da qualidade da água por dia? Não é razoável. Na área rural, 99% do fluxo de trânsito é moto e carroça, aí tem que botar o cano a três metros de profundidade, para quê? Não tem caminhão, não tem ônibus, não tem veículo pesado. Posso citar “n” exemplos de coisas que fazem com que a realidade do rural seja diferente e possibilite que a gente tenha regras diferentes”, detalha.

“Vamos pegar uma coisa boa, é muito mais fácil na comunidade rural fazer o reúso da água de esgoto do que na área urbana, muito mais fácil usar como matéria orgânica para a produção rural, muito mais fácil, mas é preciso ter regras para isso, é preciso ter mecanismos que o órgão licenciador ambiental reconheça essa possibilidade. A gente precisa fazer esse ajuste”, complementa.

Quem está ficando para trás

Paulo avalia que, no Ceará, os municípios com serviços autônomos correm maior risco de ficarem para trás em relação à regionalização. “Dentro desses municípios, e aí também nos demais, as populações rurais dispersas desses municípios. Nosso modelo do Sisar é concebido para comunidades com 70 ou mais economias. Quando eu tenho uma comunidade, como uma que estamos atendendo agora que são 14 famílias, longe uma da outra… o esgoto a lei resolveu, porque aí eu faço solução individual, mas o abastecimento de água tratada é complicado, porque primeiro você vai fazer um investimento que o per capita é altíssimo”.

Paulo Henrique Lustosa participou do encontro “As regionalizações do saneamento nos estados – perspectivas e desafios dois anos após a aprovação do Marco Legal”. Durante a mesa “Experiências práticas de regionalização nos estados – alguns casos”, Lustosa abordou a regionalização no Ceará. Participaram também Abelardo Oliveira, da Empresa Baiana de Águas e Saneamento (Embasa); Paula Pollini, do IAS;  Sebastián Butto, da Siglasul; e mediação de Karla Bertocco, conselheira do IAS.