COP 26, Emergência Climática, Adaptação e Saneamento, com Natalie Unterstell
Published in 07 Jan 2022
Written by Cristina Sena
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Especialista esteve na COP em Glasgow e destaca a participação da sociedade, em especial dos movimentos negros e indígenas, na Conferência e no debate sobre clima
A programação do Dia Mundial do Banheiro 2021 dedicou espaço importante para aprofundar o debate sobre a relação entre mudanças climáticas, adaptação e direito humano ao saneamento. O Brasil tem grandes desafios pela frente. A meta é universalizar o acesso ao saneamento até 2033, mas, de acordo com Natalie Unterstell, é fundamental investir em tecnologias que garantam esse direito sem aumentar as emissões de gases poluentes na atmosfera. Fazer com que as pessoas entendam que as alterações do clima são um tema que impactam sua rotina, seu dia a dia, e que é preciso pautar governantes, inclusive por meio do voto, é fundamental.
Natalie acompanhou presencialmente a COP 26. Atualmente, é presidente do Instituto Talanoa, um think tank dedicado à política climática. É mestre em Políticas Públicas pela Escola de Governo John Kennedy da Universidade de Harvard. Ela foi diretora da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República,negociadora do Brasil para Mudanças Climáticas na Organização das Nações Unidas (ONU) e também foi secretária-adjunta do Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas. A ativista foi entrevistada pela jornalista Maura Campanili, que tem larga experiência na cobertura da área ambiental. Confira o vídeo abaixo e leia os melhores momentos da entrevista:
Maura – Queria que você falasse um pouquinho sobre o Instituto Talanoa: o que é, o que vocês fazem e por que foi criado.
Natalie – Acabei me concentrando bastante na política de mudança do clima no Brasil, que, obviamente, me obriga a ter que entender o que está acontecendo na política internacional, mas também olhar para as demais áreas, para os demais setores e tentar conectar as agendas. Há mais ou menos dois anos cofundei essa nova organização. Queremos que nessa década o Brasil dê realmente um salto nas suas políticas de mudança do clima e estamos totalmente dedicados a isso. Nossa missão é dupla porque tem uma conjuntura muito difícil no Governo Federal, que é um player, uma peça muito importante nesse jogo. Temos um projeto grande, específico, que é a política por inteiro, e monitoramos absolutamente tudo o que o Governo Federal faz. Temos robôs e humanos que diariamente fazem a leitura do Diário Oficial da União, do que está acontecendo no Congresso e a gente fica ali, tentando entender os sinais da política para garantir que tenhamos capacidade de reagir, alimentar a própria sociedade civil brasileira, mas também o Congresso e o setor privado. Temos o lado do monitoramento e o lado do diálogo, vem daí o nome, esse nome estranho, na verdade, é muito ligado às negociações de clima. Talanoa é uma palavra que vem de línguas do Pacífico e quer dizer fazer conversas difíceis em roda e só levantar na hora em que estiver resolvido. O espírito de Talanoa foi adotado nas negociações da ONU para a mudança do clima justamente para fazer os países “sentarem em roda” e tentarem dar respostas coletivas, pois o problema é de ação coletiva. A gente adotou isso e, vale destacar, neste ano, antes da COP, durante alguns meses, nós colideramos com várias outras organizações, redes e coalizões um processo chamado “Clima e Desenvolvimento”, para dialogar sobre o que queremos de fato para o Brasil nessa década em relação às emissões e ao desenvolvimento. Tivemos a honra de discutir cenários, caminhos e fazer essas talanoas com gente muito diferente, desde lideranças indígenas como a Joênia Wapixana, o Beto Marubo, lideranças periféricas, o Douglas Belchior, quilombolas, CEOs de empresas gigantes até de algumas empresas que muita gente não gosta. Foi muito interessante poder juntar essa turma toda, governadores, prefeitos e prefeitas e fazer um diálogo do Brasil com o Brasil. Somos uma turma, 20 pessoas, e todo mundo muito com a faca na caveira, ou melhor, faca na bota.
Maura – Você é uma super comunicadora, ativa nas redes sociais, articulista, dá entrevistas. Você tem uma coisa de tradução dos dados que vocês colhem para essas tanaloas coletivas e procura trazer essas informações de forma simples, divertida. Qual é o grau da importância desse tipo de coisa?
Natalie – Obrigada por me acompanhar e que bom que você acha divertido e que tem efeito. Estamos em um momento de nos questionarmos o que, como cidadãos, podemos fazer para a questão da mudança do clima. Em geral, falo para as pessoas o que elas não devem fazer. Tem muitas falsas soluções, como usar a calculadora de carbono e compensar suas emissões. Eu faço isso, mas sinceramente é para compensar a nossa culpa, não vai resolver, pode até atrapalhar. A calculadora de carbono foi criada pelas petroleiras justamente para diluir a culpa delas. O grande mecanismo para tentar dar uma resposta nesta década para a crise climática é usando as redes sociais. Estão lá os políticos, os governantes, as autoridades, as lideranças, todo mundo que tem alguma caneta, algum botão para apertar. Hoje, a maior contribuição que a gente pode dar para esse e para outros temas é usar as redes para ter voz e conseguir fazer certas mensagens ecoarem. É um pouco da motivação.
Maura – Um post seu que eu acho muito legal é: uma pessoa consciente que não faz nada é a mesma coisa que uma que não é consciente. Eu achei muito legal e fiquei parada pensando sobre isso. O que é não fazer nada? Você de ficar contando carbono, que é alguma coisa, mas é individual. Como a gente coletivamente, como sociedade, pode realmente fazer diferença?
Natalie – É muito conceitual, mas muito prático também. As nossas escolhas são visíveis. O que tem feito diferença são aquelas escolhas que a gente faz porque alinham nossos valores, o que a gente acredita com o que a gente come, com o que a gente veste. Tem vários exemplos. Acho que o da dieta é uma questão muito difícil, porque trabalha muitas coisas culturais e as pessoas se sentem, às vezes, colocadas na parede em relação à dieta, mas que importante ter tanta gente hoje que está investindo em restaurantes veganos, criando esses negócios não só na zona sul do Rio de Janeiro, mas nas comunidades, em rincões. Isso é muito legal, porque você começa a ver que é possível, que tem variedade, que não é tudo caro. Estou dando o exemplo da alimentação porque eu acho que é uma tendência, um monte de gente agora não consegue se ver num mundo em que isso não exista, mas tem outras coisas que eu acho que são interessantes, que a gente pode fazer. Tem muito a ver com a nossa relação com o dinheiro, as empresas nas quais a gente está depositando alguma confiança, as reclamações. Sabe aquela coisa do SAC ou IDEC? Acho que nunca foi tão importante porque essa galera está sacando e são vários segmentos.
Quando a gente fala, por exemplo, de carro, já não é o mesmo sonho de consumo que as pessoas tinham há 10, 20, 30 anos. Essa turma sabe que daqui a pouco não vão mais ter carros do jeito que a gente anda hoje. O veículo com motor a combustão está em extinção. Hoje ninguém aqui tem um carro 100% elétrico, se é que tem um carro assim no Brasil. O ponto que estou querendo trazer é: eu adoraria ter um carro elétrico, acho que seria uma escolha que eu diria para as pessoas: “olha, eu tenho um carro elétrico, então você também pode ter”. Não estamos lá ainda, mas essa coisa vai chegar. A gente pode fazer isso com a bicicleta, muita gente tem usado a bicicleta como um ato político também, pedindo para o meu prefeito para ter ciclovias mais seguras, cobrando da Câmara de Vereadores, falando com as empresas.
Maura – Vamos falar agora um pouco sobre a COP 26. Você acabou de chegar de Glasgow, na Escócia. Os balanços que a gente vê em geral é de que aconteceu muita coisa, mas, de concreto, é muito pouco. Queria que você falasse um pouquinho sobre resultados mais gerais e que pudesse trazer para a discussão a área de adaptação, que é um dos grandes problemas. No caso do saneamento, do banheiro, é um desafio maior ainda.
Natalie – Eu faço uma avaliação positiva da COP de Glasgow. Tem várias razões, mas a principal delas é uma questão de expectativa. A comunidade que está envolvida com esse assunto mais diretamente tinha três grandes prioridades: a primeira é o que a gente chama de ambição, que é, de fato, conseguir aumentar as metas, cobrar compromissos melhores dos países e dos setores para ficar mais perto do limite de 1,5ºC e não passar. A segunda expectativa era bastante processual, muito voltada a coisas que estavam no acordo de Paris e precisavam ser regulamentadas. É o que a gente chama de livro de regras e tem a ver com a integridade do sistema multilateral, para fazer com que os países não só prometam, mas que haja regras de como isso vai ser cobrado, o que estava pendente há seis anos. Alguns temas já estavam caducando. E o terceiro grande pote de expectativas é o que eu chamo de pote da justiça climática. Todos esses aspectos do financiamento da adaptação, da questão de perdas e danos, que já é a situação que nem consegue mais se adaptar, porque os impactos são muito fortes. A gente teve avanços em todas essas questões. Na questão de ambição é preciso destacar dois pontos em particular. Primeiro, os países não avançaram muito em relação às suas promessas individuais. Na verdade, se contarmos só com promessas de nações, vamos para uma rota super perigosa de aumento de 2,4 a 2,7ºC da temperatura. Estamos falando de uma febre planetária, não teria mais coral que não estivesse esbranquiçado. Um planeta que não queremos nem viver, nem deixar para ninguém.
O metano teve um acordo inédito muito importante de redução de 30% das emissões até 2030 e que inclui também melhorar a medição, as estimativas do metano super crítico não só para a agropecuária, mas para a energia, que tem muitas emissões fugitivas, e para resíduos e saneamento também. Podemos ficar, de forma otimista, numa rota de 1,8ºC, o que já nos aproxima do nosso limite desejado de 1,5ºC. Ainda falta muita coisa, muita lição de casa, mas deu um alento importantíssimo porque nunca vi decisão anterior que falava de metano ou de outros gases que não o CO2 tão explicitamente. Acho que a gente tem que fazer muito mais, mas teve um passo bacana.
Essa questão do livro de regras também avançou. Acompanhei algumas salas de negociação sobre mercados de carbono, é realmente muito complexo, 57 páginas de decisão, mas conseguiram fechar. A regulamentação já foi basicamente resolvida, agora o foco é a implementação.
Nos aspectos de justiça climática (eu estou usando esse termo porque é em países desenvolvidos, não desenvolvidos e povos) entram mil questões. A gente conseguiu chegar a compromissos como de pelo menos dobrar o financiamento disponível até 2025. Questões de curto prazo para realmente dar prioridade, porque essa é uma área quase sem envolvimento do setor privado, precisa do dinheiro público. Os países pobres estão muito endividados, têm necessidades de aumentar a cobertura de saneamento, se protegerem do aumento do nível do mar, um monte de coisas. Hoje esses países conseguem acessar financiamentos via empréstimos, com taxas de juros altas, eles não têm condição fiscal. Isso foi bem discutido na COP.
Por fim, é muito difícil conversar sobre essa questão de perdas e danos. O que os países mais vulneráveis queriam nessa COP era encontrar um espaço político para essa discussão acontecer e eu acho que eles foram bem sucedidos. Eles sabiam que, se aceitassem qualquer financiamento, qualquer coisa que saísse agora, depois seriam calados, com o argumento de que o problema já tinha sido resolvido. Eles resolveram não aceitar nada que os Estados Unidos, que a União Europeia colocaram na mesa, e deixaram essa discussão com um baita espaço para ocorrer na COP do ano que vem, no Egito, no continente africano, muito voltado para resiliência. No final do ano que vem vamos ter uma COP de adaptação, perdas, danos e resiliência muito forte e pego esse ponto para fazer a conexão com adaptação e saneamento. Acho que é a hora da gente começar a destrinchar um pouco melhor o que a gente quer de adaptação em termos globais. A minha expectativa agora é que adaptação, financiamento de adaptação, perdas e danos comecem a aterrissar mais. Cerca de 90% dos impactos dos impactos da mudança do clima estão associados de alguma maneira à água, seja seca, seja inundação, aumento do nível do mar, então passa muito por aqui, mas nunca teve uma discussão de água.
Maura – É um caminho comprido. Falando dessa questão da emergência climática, trazendo para o Brasil, o nosso grande problema é o desmatamento, são as florestas, mas a emergência climática vai atingir a todos. A cada dois, três anos temos uma grande crise hídrica e vai ficando cada vez pior. Vemos as enchentes nas cidades litorâneas, além das chuvas intensas e o nível do mar subindo. Quais são as perspectivas dessa agenda para o Brasil? Estamos com um governo complicado. Há também a falta de recursos, o Brasil é um país que não é pobre nem é rico, eu não sei nem se ele entra nesses financiamentos.
Natalie – Não tem como qualificar nosso caminho econômico e social se não descarbonizar. Uma coisa está muito ligada à outra e isso quer dizer que todos os segmentos, todos os setores são importantes. Vou destacar um pouquinho a parte de saneamento e resíduos, ela é muito emblemática, primeiro porque temos um déficit enorme, que nos envergonha. A ausência de saneamento contribui muito para o problema da mudança do clima. As águas poluídas geram emissões. Por ficar tão espremido pelo desmatamento, que é uma conta tão alta, a gente acaba achando que todo o resto é insignificante, e não é. Geramos cenários de universalização do saneamento no Brasil, que é um objetivo de desenvolvimento que todo mundo quer, não é possível que alguém no Brasil não queira isso, só que você pode aumentar e universalizar o saneamento de um jeito que vai explodir as emissões nesse setor ou então pode adotar tecnologias de baixo carbono. A gente pediu para o pessoal mais especializado nessa área considerar caminhos diferentes e eles voltaram com essas trajetórias. Se vocês quiserem acessar os gráficos no clima2030.com.br, é interessante. Com as tecnologias tradicionais, a emissão vai para cima e com as outras ela diminui, o que pode gerar uma dupla solução: para o déficit de saneamento e para as emissões. Eu não sou especialista na área, mas a impressão que tenho é que os atores, principalmente governamentais, que têm responsabilidade com a agenda do saneamento, estão muito distantes da pauta de clima, não se apropriaram. Alguns têm se envolvido. A Cetesb já fez algumas contas, olha para o inventário de emissão nacional. A Malu Ribeiro, da SOS Mata Atlântica, me passou esses dados. Por exemplo, tem uma conta de nove quilos de metano per capita oriundos do déficit de saneamento no Brasil. Eles já sabem o impacto, mas não há políticas muito desenhadas ligando esses problemas e desenhando soluções. Uma perspectiva importante para o Brasil é encaixar melhor essa agenda, trazer as duas coisas juntas olhando pelo viés do metano, mas também pela adaptação, e envolver, trabalhar com as comunidades que não têm banheiro, que não têm esgotamento sanitário, acesso à água.
Quando a gente fala em financiamento de adaptação e financiamento em geral para o clima, outros países estão conseguindo captar para investir em soluções que englobem várias questões. O Brasil não fez nenhuma proposta até hoje e, por mais que a gente tenha o BNDES e a Caixa, que estão cadastrados para apresentar projetos para o Fundo Climático Verde, até agora não fizeram nada. É uma questão de desenhar solução, desenhar proposta, bater na porta, porque recurso tem, o que não tem é um conjunto de proposições variadas para tratar do problema. Obviamente, estou simplificando bastante.
Maura – Quando você fala que há tecnologias que até resolveriam o saneamento, mas não a questão do clima e que há opções, você pode dar um exemplo?
Natalie – Algumas tecnologias que entraram no Clima e Desenvolvimento acabam juntando saneamento e resíduos. Foi considerado como se aproveita biogases e as emissões de aterros, a gente olhou para algumas tecnologias que já estão funcionando muito bem no Brasil. É uma combinação de soluções que sejam mais soft e locais com outras que requerem investimentos de uma tecnologia um pouco mais hard. A gente sabe que precisa de um baita investimento, o próprio Plano Nacional de Saneamento tem lá mais de R$200 bilhões em investimentos. Precisaria direcionar com critérios de baixo carbono pra isso acontecer. Está muito propício esse momento para criar esse menu de critérios associados a investimentos para direcionar o que vier ou o que se queira de recursos para adoção dessas tecnologias mais interessantes.
Maura – Tudo isso tem que ser transformado em políticas públicas macro para o país inteiro e micro nos municípios. O que você acha que poderia ser feito pelos diferentes atores, desde os diferentes níveis de governos, sociedade, o que poderia ser feito de diferente do que estamos fazendo e você tem exemplos de coisas bacanas que estão sendo feitas?
Natalie – Niterói, com os jardins filtrantes e não só isso, estão integrando várias tecnologias para poder avançar nessa área, mas me parece que ainda é um terreno fértil para novidades nascerem. Quando fizemos o Clima e Desenvolvimento, a gente olhou para cada setor, foram vários estudos, acho que a área de saneamento e resíduos, talvez por falta de conhecimento nosso, não ficou tão rico o mapa de casos que já estão funcionando. Em relação ao que pode ser feito, tem essa questão dos Planos Municipais de Saneamento Básico, que são uma recomendação do Plano Nacional, tem toda uma questão de transparência associada ao que eles estão licitando, estão contratando de serviços tanto para coleta, transporte de resíduos sólidos e de tratamento, destinação para os aterros sanitários. É uma coisa bem complicada, em geral há muitos problemas de má gestão pública, é uma agenda que precisa ser enfrentada se a gente quiser avançar com esse setor como um todo. Tem também a questão dos consórcios intermunicipais e me parece que tem alguns funcionando melhor do que outros. Os estados podem ajudar na formação desses consórcios. Temos visto uma série de consórcios: de Governadores pelo Clima, Consórcio do Nordeste. Alguns estiveram presentes na COP. Foram 17 governadores, um recorde histórico, e eles têm falado que saneamento é uma grande questão, pode-se fomentar, pode-se usar essa plataforma para atrair recurso diretamente, porque esses consórcios têm personalidade jurídica, eles abriram uma agenda com financiadores, com investidores. É um canal importante e vale a pena ser explorado.
O Governo Federal teria muita coisa importante para ser feita. É notável que hoje não tem uma agenda desenhada para água, saneamento e clima em nível federal. Diretrizes poderiam ser construídas. Atores privados, nós que somos usuários desses sistemas, todos podemos dar mais atenção e falar mais diretamente desses problemas.
Maura – No saneamento há necessidade de investimentos muito grandes e, com as mudanças climáticas, alguns vão se tornar inócuos. Por exemplo, fazer toda uma rede de distribuição de água num manancial que não vai ter água. São questões muito importantes. Você falou também sobre transparência. Uma das coisas que a gente viu nessa publicação que o IAS fez analisando o novo Marco Nacional do Saneamento foi a baixa participação da sociedade nessa regionalização do sistema. O espaço oferecido é muito consultivo, não tem poder nenhum. Qual é o papel da sociedade civil, qual a importância de colocar a sociedade nessa discussão?
Natalie – Eu gosto muito de uma movimentação que foi feita nos Estados Unidos e que me vem à cabeça quando você faz essa pergunta, que foi o movimento Black Lives Matter (Vidas negras importam). Esse movimento, por muitos anos, teve a perspectiva do racismo ambiental, das populações negras serem as mais afetadas por contaminação de água por indústrias poluidoras, mas eles não tinham avançado para trabalhar com a opinião pública. No início da década passada o índice de negacionismo climático nos EUA na média era de 70%. Hoje é bem menor, não chega a 30%, porque teve um trabalho de base pra explicar para as pessoas que essa história de mudança do clima está muito ligada com a realidade das pessoas, com o dia a dia, com as discriminações e assim por diante. Acho esse exemplo muito potente e válido porque não acho que os governos estão muito interessados em criar instâncias de governança que ouçam as pessoas. Tem que estar na sociedade essa energia, e está nela, a gente tem que ativar essa energia para a sociedade de fato ligar os pontos e falar: “puxa, a gente está aqui falando do banheiro, então vamos trabalhar o problema, quais são as tecnologias pro banheiro, quem está sem banheiro, por que está sem banheiro, onde está faltando”, colocar a coisa um pouco mais direta e reta e, à medida que a gente consegue ser mais direto e reto, a gente consegue falar melhor com os políticos, fazer entender que os votos podem ser ganhados ou perdidos a partir dessa perspectiva.
Foi muito legal o que aconteceu para os americanos e eu vejo essa movimentação acontecer agora em movimentos negros, indígenas, etc. no Brasil. Ainda estamos tateando, ainda precisamos dar uma chacoalhada mais forte e ver como a gente chega para falar para as pessoas: “sabe essa tarifa dois vermelha que você já está pagando, já é um racionamento porque a gente está investindo em um sistema de energia que depende de água e não tem mais chuva porque não vai mais chover do jeito que chovia, então a mudança do clima você já está financiando alguma forma de má adaptação”. O que estamos fazendo hoje é isso, estamos nos mal adaptando, pra tentar manter a energia diante da estiagem a gente está ligando térmicas a carbono. São longos percursos para fazer todo mundo entender, mas eu tenho certeza que, na sociedade, tem gente com muita capacidade de simplificar e falar: “é o seguinte, a pauta é essa, vamos nessa?” Nada impede, é claro, de a gente tentar estruturar governanças, eu não desisti disso, a gente trabalha em torno disso aqui na Talanoa, mas eu não espero nada do Estado, é a sociedade que tem que chegar, pautar e pressionar.
Maura – Nesse sentido, a questão da justiça climática é um desafio muito grande de comunicação. As pessoas no Brasil não levam o saneamento a sério ou em consideração quando votam porque não reconhecem nisso um direito. Fazer essa ligação com a mudança do clima é muito importante. Nesse sentido, pelo que você falou, mais do que a gente ficar esperando que o governo faça, teria um desafio de comunicação com a sociedade em geral. É um pouco isso?
Natalie – Estou observando muito os Estados Unidos porque eles viveram um pouco antes o que a gente está vivendo agora aqui. Essa coisa toda que a gente está falando do metano, os Estados Unidos pautaram na COP e encurralaram até o Brasil, que nunca quis assinar isso. Essa mobilização veio da sociedade civil, foram os movimentos que pautaram. A gente tem que ter clareza sobre quais são nossas demandas. Falando de direitos, a gente tem o direito à cidade, ao meio ambiente equilibrado, os nossos direitos estão muito bem expostos na Constituição, no Estatuto da Cidade, entre outras. Ao mesmo tempo, parece que a gente gosta dessa coisa mais geral, mas depois não consegue criar esses mecanismos de pressão. Precisamos, talvez, passar da esfera do direito à esfera da realização dos direitos.
Acho que foi uma das COP mais legais e bonitas que eu vi, porque a gente teve mais de 80 jovens brasileiros, mais de 40 indígenas, quilombolas, lideranças de favelas em peso e eles estavam falando justamente disso, da falta de saneamento, de gente que não tem água potável decente à disposição, dos problemas do mundo real. Esses temas foram tratados fora das salas de negociação, nas salas em que estavam os brasileiros. De novo, sinto falta de uma coisa mais específica, da nossa lista de desejos do Brasil que a gente quer que vire a página no ano que vem, o que a gente vai cobrar. E quem sabe se a gente tiver várias mudanças no plano federal e também nos estados a gente consiga pautar essa agenda nova não só porque temos interesse nela, mas também pautar coisas para o mundo, tecnologias, assuntos que a gente goste.
Maura – A gente podia lançar uma lista de desejos de curtíssimo prazo para longo prazo, seria bárbaro. Estamos chegando ao fim, como você fecharia?
Natalie – Eu vi que a Paula Moreira mandou uma pergunta [no chat do evento online], vou responder. Ela perguntou o que eu acho da litigância climática, que é processar o governo, os atores privados, em relação à omissão, à falta de ação climática. Paula, eu acho bem importante isso estar acontecendo no Brasil e no resto do mundo, mas é até curioso que você tenha levantado isso nesse painel em que estamos discutindo água, saneamento e clima. Fiz um estudo sobre uma litigância em Miami. Os cidadãos processaram o prefeito e o condado porque estavam investindo US$12,5 bilhões numa planta para tratamento de água numa ilha que está sob super risco de aumento do mar. Acho importante dar esse exemplo porque, em outros lugares, a questão de água e saneamento está sendo levada pelos cidadãos para essa esfera da litigância porque é onde elas estão se sentindo mais lesadas no seu direito à cidade, ao meio ambiente equilibrado. Vale começar a elaborar: se não está tendo ação, se essa agenda não se uniu da forma como deveria, será que é o caso de fazer uso da litigância para provocar isso ou é muito distante da gente, vamos tentar fazer por uma via mais lenta e construtiva? No caso de Miami deu uma baita diferença, os cidadãos não ganharam essa ação, mas movimentaram toda a arquitetura municipal, tanto que, nos anos seguintes, o orçamento para a questão de adaptação bombou. Teve várias consequências positivas, vários benefícios. Eu fecho com isso e acho que a gente tem bastante trabalho a fazer ainda em relação a conectar todas essas pontas e levar o cenário climático em consideração, afinal de contas é disso que a gente está falando. Acho que é um começo de conversa.
O diálogo COP 26, emergência climática, adaptação e saneamento foi realizado durante a programação do Dia Mundial do Banheiro 2021. Para conferir os detalhes sobre todos os debates acesse o site diamundialdobanheiro.org.br.