Água e clima: perspectivas para 2022. Uma conversa com Antonio Nobre
Published in 20 Dec 2021
Written by Cristina Sena
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Com mais de três décadas de experiência no estudo da Amazônia, o professor e pesquisador afirma que “árvores são milagres tecnológicos”. Confira a entrevista que aconteceu na programação do Dia Mundial do Banheiro 2021
A Floresta Amazônica é fundamental para a continuidade da vida na Terra. Trata-se de uma tecnologia para a regulação climática desenvolvida por Gaia, como o professor Antonio Nobre chama o nosso planeta. “Estamos destruindo o nosso único habitat cósmico”, ressaltou, durante sua participação na mesa “Água e clima: perspectivas para 2022”, realizada em 24 de novembro, durante a programação do Dia Mundial do Banheiro 2021.
Há mais de 30 anos, o pesquisador brasileiro dedica-se ao estudo da Amazônia, ligando vida e floresta com clima. Atualmente é professor do programa de doutorado em Ciência do Sistema Terrestre do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). Nessa entrevista, ele aborda a importância dos rios voadores para o equilíbrio climático da Terra e como o desmatamento, as queimadas e o uso inconsequente da água estão nos levando ao risco de extinção. Fala também sobre amor como “uma força do Universo que guia, processa e faz funcionar a natureza”.
Leia os destaques da entrevista:
Marussia Wathely, diretora do IAS – O Antonio Nobre é uma grande referência em termos de água e clima e tem sido um grande parceiro, um grande mentor. É sempre uma fonte de inspiração e aprendizado. Agradeço muito por estar com a gente hoje. Um dos pontos interessantes para a gente conversar com você é entender melhor essa crise hídrica no Brasil, como o país dos rios está virando o país do deserto e, eventualmente, algumas projeções para o ano que vem.
Antonio Nobre – O que está acontecendo na América do Sul é um despropósito histórico com uma dimensão de desastre sem precedentes na história da humanidade. Se a gente pensar em três milhões de anos, que é o tempo do Homo erectus, depois do Homo sapiens e agora o ‘Homo ridiculus’, estamos destruindo o nosso único habitat cósmico. A América do Sul é absurdamente privilegiada em ter a quantidade de floresta que já teve e ainda tem. Já previsto há 40 anos pela ciência em geral e o nosso núcleo, de uns 15 anos para cá, vem falando sobre as consequências potenciais da destruição das florestas, dos ecossistemas, do sistema climático da Terra.
Ao todo, 97% da água do mundo está nos oceanos. A maior parte dos 3% que sobram são geleiras que estão derretendo e indo para o mar e em águas subterrâneas. Estamos falando de 0,2% de águas superficiais, que é do que a humanidade vive, basicamente. O Brasil, país com o maior recurso hídrico de superfície – acho que compete com o Canadá – e está rapidamente perdendo tudo isso.
Com uma teimosia ignara, logramos – já vinha desde o tempo da colônia na Mata Atlântica – nos últimos 40 anos destruir metade da Floresta Amazônica. Na metade oriental, nos estados do Pará, Maranhão, Tocantins e Mato Grosso, o que foi previsto já está acontecendo. Algumas previsões projetavam para 2050, 2070 o que já vem acontecendo desde 2014, 2015. Em 2014, com a ajuda do Sérgio Guimarães, do Instituto Centro da Vida (ICV), fiz uma revisão bibliográfica com mais de 200 trabalhos e construí uma narrativa já revisada e, modéstia à parte, bastante apurada, sobre o estado de conhecimento do que tange à floresta, clima, chuva, sistema hidrológico, destruição da floresta etc. E lá já estava indicado que era urgentíssimo parar de desmatar, parar de queimar, produzir fumaça e fuligem, porque a fumaça e a fuligem destroem o sistema de precipitação no oceano verde.
No tempo em que eu cheguei na Amazônia, no final dos anos 1970, havia duas estações, a úmida e a mais úmida. Hoje há uma estação úmida e seca. A fumaça e a fuligem estão selando um destino horrendo para a Floresta Amazônica, porque não choveu, a floresta começa a sentir. No começo, ela consegue ainda acesso à água do solo, mas depois de muitas décadas chega a um ponto que não aguenta mais e começa a morrer.
Marussia – Poderíamos dizer que, em relação aos rios voadores, com esse aumento do desmatamento, estamos aumentando a área seca, ou seja, a que vai capturar a umidade e, ao mesmo tempo, a fumaça e a fuligem vão capturar a chuva. É mais ou menos por aí?
Antonio – Tem dois efeitos. Se tem a floresta, tem uma máquina da bomba de água, porque ela puxa a água do solo e joga na atmosfera com uma eficiência extraordinária. Você sente, embaixo de uma árvore é fresquinho, não só por causa da sombra, é porque cada grama de água evaporada consome 570 calorias. É muito mais eficiente que um ar-condicionado, porque empacota o calor da superfície na forma do vapor. O vapor é uma abelha que sai carregada de uma flor com pólen, ele sai carregado de energia térmica, mas você não sente, porque é calor latente, não é calor sensível, o sensível o termômetro indica. Então, resfria, empacota no calor e despacha. É o Sedex da energia, a árvore despacha esse vapor que vai subindo, chega a cinco quilômetros de altura e lá começa a condensar. Vou contar um pouquinho sobre a mágica que é essa condensação. Quando condensa, o calor que foi absorvido na superfície é liberado mais próximo do espaço, acima da camada da atmosfera. É a camada com mais gás estufa. O mais poderoso que existe é o próprio vapor de água. O ar-condicionado da floresta resgata o calor aqui e libera próximo do espaço. Ou os ventos levam isso para as altas latitudes para ser liberado em regiões mais frias da Terra, os radiadores do planeta. Estou falando de temperatura, mas vale para água, porque isso explica também o funcionamento do sistema em termos de água.
Acabar com a floresta é como tirar os peitos da mãe para o bebê. Acabou, não tem mais a fonte daquela água, porque as árvores são milagres tecnológicos. Uma árvore grande consegue bombear mil litros de água em um dia e vaporizar na atmosfera. Além disso, ela libera os compostos orgânicos que eu chamei de pó de pirlimpimpim, que são os gases, o cheiro da floresta, que têm a capacidade incrível de nuclear e causar as chuvas benéficas que caem toda a tarde na Floresta Amazônica de maneira abundante. Diferente da fuligem e da queimada, os núcleos de condensação das árvores são como os hormônios do nosso corpo: em pequena quantidade, pequenos agentes que têm um efeito muito poderoso. As gotas se formam em pequeno número e vão batendo umas nas outras para formar uma gota grande e dar origem àquela chuva torrencial. As árvores da Amazônia desenvolveram um mecanismo fantástico, é como se ela fizesse cócegas na nuvem, que morre de rir e aí chora de rir e cai aquela chuva. A floresta condiciona integralmente o processo com múltiplos benefícios. A água é um deles. Ela é a bomba que propele os rios voadores.
Precisamos fazer um esforço de guerra para proteger a Amazônia, se não condenamos o Brasil à seca, a virar um deserto. A floresta, que é a bomba que propele os rios voadores para dentro do continente, foi destruída. Uma parte está em degradação por madeireiros, por grileiros de terra etc., que retiram a chamada fragmentação da floresta. Ainda tem árvores em pé, mas elas não têm mais a função hidroclimática. Uma parte, que ainda está intacta, principalmente dentro de reservas indígenas e parques, está sofrendo porque, com a fumaça e a fuligem, a chuva nessas regiões está diminuindo.
Marussia – Se você puder contar um pouquinho mais sobre o estudo que mencionou, realizado em 2014. Talvez uma das grandes referências, que é “O Futuro climático na Amazônia”, liderado por você e ajudou a popularizar boa parte dos conceitos abordados nessa entrevista, como rios voadores, pó de pirlimpimpim. Trata-se de uma enorme contribuição, sempre recomendo esse trabalho. Você continuou esse trabalho. Poderia contar um pouco sobre outras constatações?
Antonio – Estamos escrevendo um trabalho em que estudamos em detalhes os fluxos de ventos no Nordeste do Mato Grosso, no Sudeste do Pará, que inclui a região do Xingu e toda a zona de entorno, uma das regiões mais impactadas do arco do desmatamento. Sobrou terra indígena com floresta, basicamente. O resto, tudo detonado. Para realizar o estudo, acessamos um banco de dados que pega observações meteorológicas e faz o modelo climático voltar no tempo. É um volume de dados absurdo. A partir disso, desenvolvemos um programa para fazer o tracejado dos rios voadores. Fomos na história daquela região para saber como fluíram os rios sobre essa localidade que nos interessa. Analisamos o que aconteceu conforme as florestas foram sendo removidas. O que a gente encontrou foi, por um lado, fascinante, porque é uma novidade científica. Por outro, absolutamente estarrecedor.
Pegamos duas áreas de produção agrícola intensa, que é Lucas do Rio Verde (MT) e Querência (MT). Querência fica à montante dos rios voadores em relação à reserva do Xingu e Lucas fica à jusante. Estamos falando de Lucas, Sorriso, Alta Floresta, tem todo um vale. O que nos chamou a atenção foi que, à jusante, tinha duas safras por ano. Eles faziam primeiro uma safra de soja e depois uma de milheto, ou milho, ou sorgo etc. Só na região de Lucas o rendimento era R$ 80 milhões maior do que em Querência, por conta dessa segunda safra. Isso despertou nossa curiosidade. Fizemos um estudo localizado, que nunca tinha sido feito, com todas as trajetórias dos rios voadores e comprovamos que o fato desse fluxo de ar passar sobre a Reserva do Xingu (estamos falando de 150 quilômetros de floresta), é como se fosse um manancial para os rios aéreos, levava a umidade para o vale à jusante, onde ficava Lucas, e permitia a eles de um mês e meio a dois meses a mais de chuva, em comparação com a região à montante.
Esses ventos se originam no Atlântico Sul, indo para o Tropical, entram sobre a Bahia, passam sobre todo o Nordeste do Brasil, que é uma região muito seca, passam sobre o Cerrado, passam sobre zonas desmatadas e chegam à Querência. Depois, eles passam sobre a Reserva do Xingu e, finalmente, chegam no outro vale. Conseguimos demonstrar isso, temos que publicar, mas essa história já está no mundo. Estamos aguardando os pares falarem: está certo, está errado. A floresta determina chuva. Destruímos a floresta, destruímos a chuva.
Querência hoje tem a segunda safra, foi um dos municípios do Brasil que mais aumentou a irrigação. Estou fazendo uma comparação com o que aconteceu na Arábia Saudita que, há 12 mil anos, perdeu a floresta por desmatamento. No final dos anos 1970, início dos anos 1980, eles resolveram usar o aquífero, que é uma água fóssil, de 50 mil anos de idade. Fizeram poços com pivô central e usaram água como usamos petróleo, não é renovável. E o que aconteceu? Você pode ir ao Google Earth e verificar. Nos primeiros anos, os discos eram verdes, porque irrigaram, produziram. Depois, aparece um disco branco. O que é o disco branco? Sal. Quando se bombeia um aquífero e não tem recarga, vai acontecer o que aconteceu na Arábia Saudita.
Os rios voadores da Amazônia provêm água para o aquífero Guarani, para o da Amazônia (que é o maior do mundo). Esses aquíferos escoam na direção do mar. Se não tem os rios voadores, esses aquíferos vão eventualmente secar.
Os ventos, como nós previmos, sopram sobre a região do arco do desmatamento, vão na direção de Belém do Pará e saem pelo oceano. Essa é a gênese dos desertos, onde o vento sempre sopra da terra para o mar. Felizmente não é para toda a Amazônia. A porção Ocidental, que tem 85% de floresta intacta, ainda está muito funcional. Tanto é que os rios voadores continuam fluindo a tal ponto que, quando encontram o sistema que foi destruído, do Leste, acontece um fenômeno. Imagina um paquiderme, um elefante, quando se senta é difícil se levantar. Quando se senta sobre uma região uma massa de ar quente, seco, esse ar dissolve mais água do que um ar frio. Para saturá-lo com vapor, é necessária mais umidade saindo da superfície. Só que a vegetação foi toda cortada e tem pouquíssima umidade subindo para chegar no ponto de orvalho. Essa massa de ar quente gera um paradoxo meteorológico, um sistema travado, que ocorre em desertos. A frente fria do Sul não consegue penetrar e os rios voadores de umidade que vêm do Oeste da Amazônia, quando encontram esse paquiderme atmosférico, descarregam a água ali. E o que acontece? Inundação na Bolívia, na Colômbia, no Alto Rio Negro, no Acre, e seca no resto do Brasil. Ninguém tinha explicado esse fenômeno ainda. E esse fenômeno é: quebramos o rio voador do Leste.
Marussia – Falamos bastante sobre o paquiderme atmosférico em 2014 e em 2015, quando houve a crise hídrica, que acabou virando uma grande crise de abastecimento na região metropolitana de São Paulo. Estamos com uma situação de crise hídrica afetando uma área potencialmente muito maior. Podemos imaginar que esse paquiderme está se formando novamente? Como isso pode se configurar? Já temos mais de 7 milhões de pessoas no Brasil sob racionamento de água.
Antonio – Estamos falando do aquecimento global, das mudanças climáticas no planeta inteiro, não é só por conta do desmatamento. Temos uma falência múltipla de órgãos do planeta. Mas o fato de acontecer isso aqui (no Brasil) está diretamente conectado ao desmatamento, é um consenso científico. Há, obviamente, a dissensão de mercenários pagos, que são pessoas que um dia precisariam enfrentar um ‘Tribunal de Nuremberg do Clima’. O paquiderme atmosférico se instala por conta da destruição da vegetação, mas há outros componentes que afetam.
Estamos falando de um sistema complexo e o que está acontecendo vem do nível planetário, da película de Gaia, as alterações massivas. A floresta Amazônica lidou com os cataclismas da Terra por 50 milhões de anos, graças à bomba biótica de umidade, aos rios voadores e à capacidade da biodiversidade funcional de lidar com os desafios. Como a gente está cortando tudo: com motosserra, trator com correntão, fogo, não tem como esse sistema se suportar. O sistema que dá o equilíbrio hidrológico, climático da Terra está sendo destruído.
A primeira coisa a fazer é acionar todo o sistema de polícia, as leis etc. e botar os destruidores na cadeia. Eles são vírus extremamente agressivos, estão destruindo a vida na Terra, não é só destruindo a floresta ali, no município. A segunda coisa é acabar com fogo, fumaça e fuligem, que é um dos desafios mais prementes, porque tem que mudar a mentalidade das pessoas. Hoje a gente tem satélite que consegue ver, com resolução de metro, se o cara acender um fósforo dá pra ver do espaço. Se houver vontade, a gente tem condição de parar com isso. Terceira coisa, obviamente, combater o desmatamento, mas tudo isso não é suficiente. A gente precisa replantar a floresta. E, por fim, aumentar a eficiência do uso da água. No Brasil mais de 70% da água é consumida pela agricultura com aspersor. Se eu uso um aspersor para irrigar uma plantação eu consumo cem vezes mais água do que se usar a irrigação por gotejamento. Há uma nova técnica chamada irrigação por capilaridade que usa um sistema de membrana semipermeável para passar somente a água que as raízes puxam. É 75% mais eficiente que o gotejamento. Os aspersores deveriam ser totalmente proibidos. Usar essa irrigação mais moderna reduz a um milésimo a quantidade de água usada pela agricultura e libera um enorme contingente de recursos hídricos para outras utilidades, como, por exemplo, hidroeletricidade, saneamento, ampliar a irrigação. Temos que fazer isso, senão estamos perdidos.
Marussia – O saneamento no século XXI é mais circular, voltado para usar melhor a água daquele local e reutilizar. Isso se relaciona com o que aprendi com você: não é que a gente vai acabar com a água do planeta, a gente está acabando com os espaços de renovação da água. Gostaria que comentasse sobre a importância de recuperarmos esses espaços.
Antonio – Me veio à cabeça enquanto você falava o Nicola Tesla da Agricultura, que é o Ernest Götsch. Ele fez a agricultura sintrópica no sul da Bahia e conseguiu reconstruir o ciclo hidrológico na escala local. Perguntei a ele como as plantas todas verdes mesmo na seca. Ele levantou um folhiço no chão da floresta e mostrou o solo que estava uma farinha seca. Nesse folhiço tinha fungos que conseguiam tirar a água do ar e fornecer para as plantas. Eu sou agrônomo, trabalhei muitos anos com solo e aquilo ali parecia mágica. É tão essencial que a gente cuide com a tecnologia de Gaia. As florestas são tecnologia de Gaia, as sementes são tecnologias de Gaia, a gente precisa trazê-la de volta em todo o seu esplendor.
Marussia – Poderia deixar uma mensagem final?
Antonio – A gente precisa tocar num quesito que muitas vezes é considerado piegas que é o amor. Amor é uma força do Universo que guia, processa e faz funcionar a natureza. A leitura darwinista é parcial, é incompleta e equivocada, portanto, quando é aplicada em grande escala, porque na natureza funciona amor incondicional. Eu já escutei o Ailton Krenak falando isso, escutei o Ernest Götsch e eu repito muito: o amor é a força da fusão, da união, da interação, desde uma célula eucariótica, que tem as mitocôndrias e os cloroplastos e foi um amor, foi uma fusão. A nossa salvação como civilização só pode ser encontrada, chegada, sonhada se a gente cultivar o amor. Estou falando isso porque com ciência somente tem se mostrado insuficiente. Há décadas a ciência usa a racionalidade para falar para a humanidade o que está errado, o que está certo, o que pode mudar, o que precisa fazer, sem consequências a não ser ir piorando e piorando. O cérebro é uma boa ferramenta, mas não tem nenhuma personalidade. A gente precisa colocar alma, espírito, nas coisas que a gente faz, porque aí reside a solução.
Esta entrevista fez parte da programação do Dia Mundial do Banheiro 2021.
Para saber mais detalhes da programação do Dia Mundial do Banheiro 2021 acesse o site diamundialdobanheiro.org.br.