A crise dentro da crise dentro da crise

imagem mostra vista área de uma favela para representar a questão do saneamento na pandemia

*Marussia Whately e Rebeca Lerer

O Dia Mundial da Água de 2020 acontece em pleno tsunami das crises climática, hídrica e da pandemia do coronavírus. No Brasil, o contexto escancara a falta de saneamento básico. Não bastaram décadas de pesquisas e denúncias realizadas por cientistas, ONGs e comunidades afetadas. Não bastaram tratados da ONU e a própria Constituição Federal. Não bastaram as centenas de mortos a cada temporada de enchentes, as vítimas de estiagens prolongadas e os altos índices de doenças decorrentes da falta de saneamento; nem o consenso científico sobre o colapso climático foi suficiente. Precisou vir o coronavírus para expor o drama sanitário associado à precariedade do saneamento básico no Brasil.

Estamos pelo menos 30 anos atrasados em infraestrutura e serviços para garantir acesso universal ao saneamento. Hoje, mais de 86 milhões de brasileiros (40% da população) convivem com acesso precário à água potável — imprópria, intermitência ou sem abastecimento, segundo o Plano Nacional de Saneamento (PLANSAB 2019). De acordo com a UNICEF, 25% das crianças e adolescentes estão crescendo junto ao esgoto.

Lavar as mãos com água e sabão para conter a Covid-19? Precisamos voltar algumas casas.

Eventos climáticos extremos têm sido cada vez mais frequentes e intensos. Em janeiro, enchentes e deslizamentos de encostas causaram mortes e deixaram milhares de desabrigados em estados como Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo. Um escândalo que acaba normalizado, ano após ano, por manchetes de jornais e declarações de governantes que culpam a “chuva” enquanto ignoram a necessidade de adaptação aos impactos das mudanças climáticas.

Água e clima são indissociáveis e, por isso, planos de adaptação à nova realidade climática deveriam ser prioridade de todos os governos. Políticas de drenagem de águas pluviais e ordenamento urbano para evitar zonas de risco devem ser integradas à proteção de mananciais e garantias de abastecimento contínuo à população. A adaptação inclui o acesso ao saneamento e é urgente para garantir a segurança das pessoas.

Cidades mais adaptadas e com sistemas robustos de saneamento teriam evitado que as primeiras semanas da pandemia de coronavírus no Brasil desencadeassem também uma grave crise sanitária. Enquanto o debate público e midiático se concentra na quantidade de leitos do SUS e na recessão do PIB, comunicadores de favelas e periferias têm sido as principais vozes a denunciar a falta d’água em suas comunidades.

Eles já entenderam que, embora a Covid-19 seja transmitida pelo ar e pelo contato entre as pessoas, as medidas de prevenção dependem do saneamento básico. Populações sem acesso à água, expostas ao esgoto e aglomeradas em bairros de alta densidade populacional não têm como cumprir as práticas sanitárias recomendadas pelas autoridades para achatar a curva de expansão da doença no Brasil.

Os planos de contingência para a pandemia devem garantir abastecimento de água potável a todas as pessoas. Suspender a cobrança e proibir cortes por inadimplência são medidas fundamentais previstas na Lei Nacional de Saneamento. Porém, é preciso assegurar o fornecimento com controle de qualidade em caminhões-pipa e outros meios àqueles que estão sem água. Sabão e álcool gel, além de cestas básicas, devem fazer parte desses kits emergenciais. Como titulares e contratantes dos serviços de saneamento, o municípios devem liderar as respostas emergenciais em parceria com outros níveis de governo.

O primeiro legado da pandemia de coronavírus foi escancarar a vulnerabilidade da população que vive em áreas de saneamento precário, nos colocando frente a frente com a profunda desigualdade social que marca o passado e o presente do país. O Brasil está, literalmente, na merda. Se não priorizarmos os direitos humanos à água e ao saneamento, o caos sanitário continuará sendo a realidade do nosso futuro.


*Marussia Whately é arquiteta e urbanista, especialista em recursos hídricos, idealizadora da Aliança pela Água e uma das fundadoras do Instituto Água e Saneamento
Rebeca Lerer é ativista de Direitos Humanos

Originalmente publicado no Portal ECOA, do UOL